olhar do instante

De todos os meios de expressão, a fotografia é o único que fixa para sempre o instante preciso e transitório. Nós, fotógrafos, lidamos com coisas que estão continuamente desaparecendo e, uma vez desaparecidas, não há mecanismo no mundo capaz de fazê-las voltar outra vez. Não podemos revelar ou copiar uma memória
— Henri Cartier-Bresson

Desde pequeno, meu olhar sempre foi bem inquieto. Gostava de deitar no chão e tentar enxergar o mundo pela perspectiva das formigas. Buscava um olhar primitivo, inspirado nos animais que me acompanhavam na infância: Tony parceiro, meu sapo de estimação; Petrus, o meu pastor alemão predileto; não excluo algumas minhocas e pequenas cobrinhas que viviam nas montanhas perto de casa.

Talvez por querer lembrar de muitas coisas, eu descobri que tenho muita dificuldade em guardar dados. Meu cérebro nunca foi forte em exatas, sempre preferiu armazenar imagens. Comecei a sacar que as minhas memórias mais vivas são as fotográficas, como se descobrisse trechos de um rolo de filme com coisas ali que eu nunca tinha me ligado. Mas nessa busca incessante por registros, por muito tempo não soube como transformar minhas lembranças em algo tangível.

Bora pular umas décadas agora. Foi só em 2009 que começaram os primeiros cliques fotográficos do meu “álbum de vida”. Em São Paulo, comprei no Standcenter uma Panasonic FZ28, câmera bem simples e com um precinho bom. Na real, pensando agora, a câmera não tinha nada, nem lente intercambiável. Era um corpo com um zoom digital sintético e esquisito. Achei aquele trambolho um avião, justamente por não entender nada do assunto.


Na mesma época, meu irmão fotógrafo, Tuca Vieira, estava em Berlim em um período sabático. Fui encontrá-lo e passei 16 dias no apartamento do artista Alex Flemming. A cidade virou cenário para descobertas: muitas pedaladas, encontros improváveis, fugas de javalis na floresta, a visita à Teufelsberg — montanha de entulho da Segunda Guerra que abrigou uma estação de escuta na Guerra Fria —, uma paquera inusitada de uma senhorinha no Café Burger e até idas de bicicleta às baladas, num coletivo social sobre duas rodas.

Em Berlim aprendi a beber vinho, a apreciar cerveja como se fosse um alimento, e a confrontar os traços do nazismo que até então só existiam nos livros e nas aulas da escola. A cidade me atravessou: cicatrizes urbanas marcavam também o meu corpo, e cada esquina dilacerava e reorganizava minhas ideias.

Fotografar ali foi como aprender a fixar o instante pela primeira vez. Considero aquelas imagens as piores que já produzi, mas talvez sejam justamente as que mais gosto. Elas guardam o erro da primeira tentativa, o esforço de olhar através de uma lente.

Como dizia Bresson, o instante é transitório. E finito.

Café Zapata

Na realzona, as fotos que ilustram este post já não existem. O Café Zapata, um dos lugares mais intensos que conheci, desapareceu junto com a antiga atmosfera da Oranienburger Straße. A única lembrança que tenho é uma foto tremida feita com meu celular precário. Mas ao revê-la, sinto de novo a textura da noite, os sons ásperos e as conversas subterrâneas. O Zapata era isso: um recorte no tempo, um teatro sem ensaio.

Percebi então que a tecnologia pouco importa na fotografia. Imagens granuladas, estouradas ou borradas também contam histórias. Não sou profissional, nem pretendo ser. A fotografia entrou na minha vida como um suporte estético para preservar lembranças que minha memória sozinha não dá conta de guardar.

Para mim, a fotografia é uma caneta: escreve imagens em um livro autobiográfico. Eu fotografo textos e escrevo fotografias. É um processo reverso.

E no fim, talvez as melhores imagens fiquem mesmo guardadas na memória, não no papel. É nesse gesto de transferir algo invisível para um suporte tangível que a fotografia se torna mágica. Democrática. Porque, no fundo, todos nós somos fotógrafos de alguma coisa.

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